
O projeto “Indicadores de Cidadania e Políticas Públicas” tem como escopo as novas demandas e conflitos envolvendo as práticas políticas em Direitos Humanos na contemporaneidade. Esta proposta nasce como um desdobramento das repercussões alcançadas pelo projeto “Indicadores de Cidadania e Políticas Públicas no Âmbito Penal”, que sob a direção científica da Universidade Salvador (UNIFACS) em parceria com o Ministério Público da Bahia (MP-BA), bem como do apoio prestado pela Secretaria de Administração Penitenciária e Ressocialização do Estado da Bahia (SEAP-BA) e do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), corroborou para a formação de uma rede internacional de pesquisa especializada no tratamento de dados relativos à promoção da dignidade humana no cárcere.
A execução do primeiro projeto ensejou uma série de ações sistemáticas, de disseminação científica e iniciativas coordenadas, que contaram com o apoio de cinco universidades nacionais (UFAL, UFC, UFMS, UNISBA, UNEB), três universidades e centros de pesquisa de Portugal e Espanha (UPT, ISCTE-IUL, USAL) e três órgãos da administração pública (SEAP-BA, TJ-BA, PGE-CE). Foram realizados congressos, oficinas, seminários, colóquios, visitas técnicas, publicações coletivas, atividades de extensão, exposições artísticas, mostras de cinema e um conjunto de outras interversões com foco na consolidação de um programa institucional e acadêmico em Direitos Humanos aplicados à realidade prisional. Tais esforços reverberaram positivamente para que uma das pesquisas concebidas na esfera de abrangência do projeto fosse contemplada no edital MCTIC/CNPq/FNDCT/MS/SCTIE/Decit Nº 07/2020 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), no intuito de reunir e examinar dados concernentes ao impacto do COVID-19 nas populações carcerárias.
Partindo desta experiência, a presente proposta revela uma necessária abertura para se pensar as violações aos Direitos Humanos em outros contextos, como, por exemplo, as relações de gênero, a invasão de reservas indígenas, a violência policial, as desigualdades regionais e socioeconômicas, as questões étnico-raciais, a vulnerabilização da infância, da maternidade e da juventude e a proteção ambiental. Ainda que muitos desses temas possam guardar evidente afinidade com a abordagem criminológica, não se escusa a possibilidade de apreciação pela teoria crítica, pelo giro decolonial, pelo movimento feminista, pela epidemiologia e perspectivas diversas que demandam abordagem e uso de métodos interdisciplinares.
Neste sentido, para além da continuidade dos trabalhos já desenvolvidos, a nova configuração do projeto e do grupo de pesquisa tenciona sistematizar e aprofundar, em nível teórico e empírico, o caráter interdisciplinar das ações e estudos em Direitos Humanos Aplicados, de modo a contribuir com a produção de material qualificado sobre o tema, além de ajudar na formação de fóruns especializados para a discussão desses conteúdos. Parte-se do pressuposto de que a compreensão integral dos Direitos Humanos depende, substancialmente e, em primeiro plano, de uma articulação ampla e engajada com as mais diversas áreas do conhecimento, bem como a inclusão de setores da sociedade civil e da administração pública no plano de efetivação dessas políticas. Concebemos, portanto, um grupo multidisciplinar e de abordagem mista, com profissionais da saúde, do direito, ativistas, catedráticos, servidores públicos, assistente social, jornalista, artistas e estudantes, todos comprometidos em promover conjuntamente o debate em alto nível das pautas afetas ao campo dos Direitos Humanos Aplicados.
Constitui-se como aporte condutor desses estudos a análise crítica dos Direitos Humanos, buscando compreender tais direitos e reivindicações dentro do panorama histórico das lutas e conflitos que ainda hoje (e, talvez, mais do que nunca) pressionam pela sua materialização. Afinal, como já havia reportado Norberto Bobbio[1] no clássico A Era dos Direitos: “Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”. Por essa razão, uma prática efetiva dos Direitos Humanos deve considerar a natureza antagônica e instável desses direitos, também o fato da fragilidade dos ordenamentos jurídicos e tratados internacionais que, muito embora, proclamem tais conquistas, nem sempre são suficientemente dotados de mecanismos para sua plena execução.
Por conseguinte, a forma Ocidental pela qual os Direitos Humanos são interpelados, privilegia o suposto universalismo dos seus institutos, segundo o qual os seres humanos, de qualquer tempo e lugar, seriam dotados de uma mesma abstração natural e por essa condição seriam em si sujeitos de alguns direitos, direitos estes anteriores ao próprio Estado. Essa concepção liberal dos Direitos Humanos negligencia o contexto cultural a que estão inseridos os sujeitos humanos mesmos a quem esses direitos pretendem atingir. O universalismo e a abstração são duas das características que impedem uma reflexão dos Direitos Humanos alinhada à realidade de cada país e de cada povo, mais do que isso, porque não levam em consideração sequer a estrutura heterogênea das sociedades, sua divisão de classes, gênero, raça e outras categorias de desigualdade social. Assim, se por um lado, concordamos com Bobbio em sua afirmação de que os Direitos Humanos são direitos históricos, nos aproximamos igualmente das posições defendidas por Joaquín Herrera Flores[2], para quem os Direitos Humanos são produtos da cultura e, por isso, só podem ser inteiramente compreendidos a partir das especificidades de cada contexto político, econômico, social, ecológico, cultural e subjetivo[3].
Prospecta-se que este grupo de pesquisadores possa conduzir a um novo estágio nas discussões sobre os Direitos Humanos, albergando projetos concretos coletivos (como o que se encontra em execução, fomentado pelo CNPq) e individuais (de PIBIC, Mestrado, Doutorado e Pós-doutorado); problematizando conceitos, práticas e políticas públicas e apontando alternativas aos modelos vigentes na produção de conhecimento com fito a subsidiar planos de intervenção para mitigar as vulnerabilidades neste campo. Discutir e atuar em Direitos Humanos são uma tarefa contínua que, provavelmente, nunca se esgotará, seja porque novas violações continuam a surgir diariamente, seja porque os Direitos Humanos enquanto um conjunto de práticas voltadas à preservação da espécie e do meio ambiente, são uma das poucas garantias e, talvez, a única esperança de um futuro melhor a uma sociedade que se ordena pela democracia.
As pessoas aprendem a cuidar de si e dos outros quando lutam pelo direito a ter direitos.
Linhas de pesquisa:
- Direitos Humanos e Cidadania
- Direitos Humanos e Cárcere
- Direitos das Mulheres e Igualdade de Gênero
- Sustentabilidade e Proteção Ambiental
- Direitos dos Povos Indígenas
- Políticas Raciais e Inclusão Social
- Direitos das Minorias
- Direitos da Criança e do Adolescente
- Desigualdades Regionais e Desenvolvimento
- Refugiados e Migrações Forçadas
[1] BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 2.
[2] FLORES, Joaquín Herrera. Los derechos humanos como productos culturales: crítica del humanismo abstracto. Madrid: Catarata, 2005.
[3] Além dos autores já mencionados, também compõe o marco teórico do grupo, o seguinte corpo de pensadores: Michel Foucault, Jürgen Habermas, Enrique Dussel, Walter Mignolo, Aníbal Quijano, Immanuel Wallerstein, Nelson Maldonaro-Torres, Arturo Escobar, Hannah Arendt, Boaventura de Sousa Santos, Achille Mbembe, Jaime Breilh, Judith Butler, Angela Davis, bell hooks, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Luis Alberto Warat, Giorgio Agamben, Erving Goffman. Em relação as ferramentas metodológicas utilizadas, encontram-se: análise de conteúdo, revisão bibliográfica, estudo de caso, entrevista semiestruturada, análise de discurso, história de vida, pesquisa documental e empírica.